quinta-feira, 30 de junho de 2011

Lâmina

Leio no brilho do teu olho
Meu corpo – dado como morto –
Re-nascido.

Escrevo na folha do teu corpo
Meu nome – antes sem voz nem paz –
Re-citado.

Calado e inteiro ao teu lado
Te ofereço a face
Te estendo a mão
E estou ao alcance da tua alma.

Calma, eu posso te ver em mim
E me ver em ti:
Corpo e Alma:
Reflexos, ecos, pedaços completos:
Amor.


Sílvio Bedani

quarta-feira, 29 de junho de 2011

fora de si

eu fico louco
eu fico fora de si
eu fica assim
eu fica fora de mim

eu fico um pouco
depois eu saio daqui
eu vai embora
eu fica fora de si

eu fico oco
eu fica bem assim
eu fico sem ninguém em mim

Arnaldo Antunes

terça-feira, 28 de junho de 2011

Pousa a mão na minha testa


Não te doas o meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
– Amor.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Conto Erótico nº 1


– Assim?
– É. Assim.
– Mais depressa?
– Não. Assim está bom. Um pouco mais par...
– Assim?
– Não, espere.
– Você disse que...
– Para o lado. Para o lado!
– Querido...
– Estava bem mas você...
– Eu sei. Vamos recomeçar. Diga quando estiver bem.
– Estava perfeito e você...
– Desculpe.
– Você se descontrolou e perdeu o...
– Eu já pedi desculpa!
– Está bem. Vamos tentar outra vez. Agora.
– Assim?
– Um pouco mais para cima.
– Aqui?
– Quase. Está quase!
– Me diga como você quer. Oh, querido...
– Um pouco mais para baixo.
– Sim.
– Agora para o lado. Rápido!
– Amor, eu...
– Para cima! Um pouquinho...
– Assim?
– Ai! Ai!
– Está bom?
– Sim. Oh, som. Oh Yes, sim.
– Pronto.
– Não! Continue.
– Puxa, mas você...
– Olha aí. Agora você...
– Deixa ver...
– Não, não. Mais para cima.
– Aqui?
– Mais. Agora para o lado.
– Assim? Para a esquerda. O lado esquerdo!
– Aqui?
– Isso! Agora coça.


 Luis Fernando Veríssimo 


sexta-feira, 24 de junho de 2011

Homenagem ao Nascimento de Machado de Assis (Quarta Parte)

Capítulo LXXI  do Livro Memórias Póstumas de Brás Cubas:


O senão do livro


Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Está é a grande vantagem da morte, que, se não deixa 
boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair.

Machado de Assis

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Homenagem ao Nascimento de Machado de Assis (Segunda Parte)


A Um Bruxo, Com Amor

 
Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
                                 estão apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,

mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,

o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)

o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.



 Carlos Drummond de Andrade