domingo, 27 de novembro de 2011

Encontro das águas


São dois
Dois rios
Dois brios
Duas saudades
Duas rimas
Duas almas
Irmãs e primas
Nuas e cruas
Duas estradas
Que se cruzam
Ou se aninham
As duas
Dois peitos nus
Duas pontadas
Alguma coisa que fica
Outra que vaga
Um filho do vento
Uma filha das águas
Tardes dúbias
Duplas ruas
Duas maldades
Duplicatas
São duas
Pérolas negras
Nela pousadas
Encontro de águas
Negro rio
E Amazonas
Antes, Solimões
Duas solidões
Óleo quente
Água fria
Não se misturam
É encontro
São dois rios
Duas almas
São duas

(AnaCris)


domingo, 20 de novembro de 2011

domingo, 6 de novembro de 2011

Sem Medo


Hoje creio
no olhar da tigresa,
nas unhas da fêmea
e no estrago que faz
a beleza

Conheci meu poder:
até onde mando
ou calo
até onde peço
ou devoro
até quanto ir
– se é longe –
ou se paro.

Decido
se desço à noite
ou se o dia,
varo.

Ele ainda me arrepia,
mas não mais me controla
ele agora é escravo,
e eu a Senhora.

(Flávia Perez, in “Leoa ou Gazela, todo dia é dia dela”, pg. 52.)


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Ausência


Nem sempre temos nós sobre o destino
poder pra decidir o rumo à frente.
Às vezes somos elo pequenino
que vai e vem seguindo a corrente.

Os sonhos que trazemos de menino
se perdem, tomam rumo diferente.
Daí se estabelece o desatino:
nem sempre o que se faz é o que se sente!

Então fica um vazio dentro do peito
e a sensação que surge é o nada em torno.
Difícil reverter. Ah, não tem jeito!

E o pouco que nos cabe é quase zero:
da ausência irreversível me conforto,
da ausência reversível desespero...

(Cesar Veneziani)


domingo, 23 de outubro de 2011

VI


Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, 
na sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
Usá-las como quem usa brincos.

(Manoel de Barros, in “Arranjos Para Assobio”, pg. 19.)


domingo, 16 de outubro de 2011

Eles não usam black-tie


Tião – Tem uma nota sobre a greve na primeira página!...
Otávio – Se até as oito horas da noite não derem o aumento, greve geral na metalúrgica!
Tião – Ninguém tem peito, pai!
Otávio – Como não tem peito? Tá esquecendo do ano passado?
Tião – Eu não tava lá.
Otávio – Mas eu estava! Deram aumento ou não deram?
Tião – Deram parte do aumento, parte. E mesmo assim porque todas as categorias aderiram! Mas aguentá o tranco sozinho, ninguém.
Otávio – Espera só a assembleia de hoje e vai ver se tem peito ou não! Eu tinha avisado, heim! O ano passado entramos em acordo com o patrão e foi o que se viu. Agora, aprenderam.
Tião – E por que entraram em acordo?
Otávio – Porque parte da comissão amoleceu...
Tião – Tá vendo, tai! Se em greve de conjunto metade da turma amoleceu...
Otávio – Metade da turma não senhor! Metade da comissão.
Tião – E então?
Otávio – E então, o quê? Eram pelegos! A turma topava mais tinha meia dúzia deles que eram pelegos. A turma topava, os pelegos deram para trás.
Tião – Não, pai! Pro senhor, quem não pensa como o senhor é pelego...
Otávio – Nada disso. Eram pelegos no duro. Taí a prova: ta tudo bem arrumado na fábrica. Tudo chefe e fiscal! O que é isso? Peleguismo, traidores da classe operária.
[...]
Maria – Medo, medo, medo da vida... você teve!... preferiu brigá com todo mundo, preferiu o desprezo... Porque teve medo!... Você num acredita em nada, só em você. Você é um... um convencido!
[...]
Tião – Maria, pelo menos tu sabe que eu arranjei saída. Agora ta feito, num adianta chorá!
[...]
Maria – Medo, medo, medo...
Tião – Medo, está bem, Maria, medo!... Eu tive medo sempre! [...] Não queria ficá aqui sempre, ta me entendendo? Tá me entendendo? A greve me metia medo. Um medo diferente! Não medo da greve! Medo de sê operário! Medo de não saí nunca mais daqui! Fazê greve é sê mais operário ainda!...
Maria – Sozinho não adianta!... Sozinho tu não resolve nada!... Tá tudo errado!

(Gianfrancesco Guarnieri, in fragmentos da peça “Eles não usam Black-tie”, 7º edição, 1991.)